sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Sobre "Saco de Ossos" e os fantasmas de Sara Laughs...



O livro é uma paulada do começo ao fim. Literatura Gótica da melhor qualidade. Além do mais, pode surpreender aos fãs tradicionais de Stephen King, por tratar-se de uma legítima "ghost story", contando com todos os elementos característicos do gênero e deixando de lado um pouco os fatores "psi" e "sci-fi", tão explorados por King em sua literatura. É sem dúvida alguma, uma história sobre a solidão e sobre como ela mexe com a cabeça da gente, principalmente quando aquilo que de mais sólido possuímos na vida, se esvai em fumaça de uma hora para a outra - trazendo à tona circunstâncias e acontecimentos até então desconhecidos, que servem para nos mostrar que talvez a nossa vida (e as pessoas que mais amamos) não fossem exatamente aquilo em que "tão solidamente" acreditávamos...
Mike Noonan é um escritor famoso, considerado um dos maiores romancistas de sua época. Leva uma vida feliz com sua esposa Joanna (ou simplesmente "Jo", para os íntimos), com quem divide uma existência pacata e reclusa em algum lugar da Nova Inglaterra. Possuem uma magnífica casa de veraneio (batizada por Jo de "Sara Laughs") à beira de algum grande lago no Estado do Maine, onde compartilham os momentos mais especiais de seu casamento, e também, onde Mike escrevou alguns de seus melhores romances. Tudo vai muito bem na vida dos dois, exceto por um pequeno e frustrante detalhe: Mike não pode ter filhos, devido à uma previamente diagnosticada "baixa contagem de espermatozóides" (com esse argumento aparentemente simples, King introduz um elemento freudiano absolutamente enlouquecedor na trama!), o que constitui a principal "encanação" no contexto da maravilhosa relação que vive o casal. Relação que a gente passa a conhecer profundamente, através dos incontáveis flashbacks, tão explorados por King ao longo da narrativa.
O acontecimento central - e essa é a primeira "grande porrada" que o livro te dá, logo no segundo parágrafo - é que Jo (a mocinha da história) é morta de um jeito brutal e estúpido bem no início da trama: atropelada por um caminhão de lixo que manobrava no estacionamento de uma drugstore, onde ela fora comprar seu habitual remédio para sinusite, deixando Mike viúvo e com um fato estarrecedor com o qual ele precisará aprender a lidar, uma vez que Joanna não está viva mais para prestar esclarecimentos: Jo estava grávida!
Quatro anos se passam, e Mike se torna um espectro do escritor bem sucedido que fora um dia. Completamente traumatizado pelas circunstâncias da morte de sua mulher e atormentado por questões insolúveis acerca da fidelidade de Jo, começa a viver uma terrível e assustadora menopausa criativa: simplesmente não consegue mais escrever. Passa horas sentado diante do computador, com a janela aberta no editor de textos, o cursor piscando na página em branco, sem uma única linha escrita. O que vinha lhe salvando perante a editora com a qual tem um contrato milionário de lançar "um livro por ano", era o fato de ter guardado em casa, dentro de um cofre, os manuscritos de quatro romances inéditos, escritos por ele nos tempos de faculdade e com os quais vinha dando continuidade à sua relação contratual. Porém, o último deles fora entregue no começo do ano, e chegava a hora dele ter que apresentar um novo trabalho para o seu editor (que não fazia nem idéia de que a fonte literária de Mike havia "secado" junto com a morte de Jo!)... Por uma questão de sobrevivência, Mike precisa voltar a escrever, de qualquer jeito! Ou então perderá sua querida Sara Laughs, a magnífica casa de campo, que constitui a ÚNICA LEMBRANÇA boa que lhe resta dos dias felizes de seu casamento.
Decide então mudar-se para Sara Laughs, na esperança de que as recordações o estimulem a voltar a escrever, mas descobre que a presença de Jo em cada pequeno detalhe da casa é praticamente sufocante. É quando começam os pesadelos e as crises de sonambulismo...
Mike começa a se deparar com mensagens escritas na porta da geladeira com os imãs de letrinhas - mensagens que parecem "acusar" Jo de traição; depara-se com provas de que Jo esteve freqüentemente em Sara Laughs na companhia de outro homem nos últimos meses de sua vida; encontra na gaveta de sua escrivaninha, o esboço de um romance que Jo estava escrevendo sem jamais haver lhe comentado o assunto. Mike começa a enlouquecer...
Entre mergulhos solitários no lago, à sombra de uma velha bétula e solitários passeios de carro pelo balneário, fervilhando de turistas em plena temporada, ele vive sozinho a sua desventura fantasmagórica (digna da mais assombrada das mansões vitorianas do séc. XIX) até chegar a uma conclusão estarrecedora: Sara Laughs está viva!!!
Começa então uma incansável pesquisa por parte do escritor, em uma desesperada tentativa de identificar os fantasmas de Sara Laughs, da qual Joanna era apenas o mais inofensivo deles. Cada nova descoberta é uma revelação - não apenas acerca de sua própria vida conjugal (à qual ele conhecia muito menos do que poderia supor), como de grandes segredos guardados pelos habitantes da pacata cidade lacustre de veraneio... Segredos relacionados a vergonhosos crimes sexuais, ocorridos no passado com a conivência de todos os habitantes e diretamente relacionados à própria Sara Laughs. Mas isso vocês terão que ler o livro para descobrir!
No geral, "Saco de Ossos" (Ed. Objetiva, 1998 - 754 págs.), é um ótimo entretenimento (apesar de ter uma parte meio "mela-cueca", quando Mike se envolve sentimentalmente com a garota do trailer e sua filhinha de seis anos de idade) e tem algumas passagens realmente assustadoras (como aquela em que o sino pendurado no pescoço do alce empalhado na sala, começa a tocar sozinho no meio da noite, da mesma maneira que Jo o agitava quando ela e Mike estavam transando; ou o lance das corujas de plástico no porão - só mesmo lendo!), mas me deixou com um gostinho de "quero mais"...
Não gostei do final (que apesar de não ser exatamente "feliz", foge um pouco da total desgraceira já característica das obras de King) e também não gostei da "baboseira kardecista" que o autor pareceu - a mim pelo menos - querer passar como mensagem no final das contas.
De qualquer maneira, fica dada a minha dica...