segunda-feira, 22 de junho de 2009

Sobre baleias e grãos de areia

No primeiro final de semana após as aulas começarem ― já repararam nesse hábito irritante que a FDC tem de começar as aulas numa quinta-feira, sob o pretexto de evitar as temidas “aulas de reposição”? ―, eu estava em Santa Catarina por conta de uma reunião com um grupo de estudos do qual eu participo lá em Joinville, quando no sábado ao entardecer, após o encerramento das atividades do Campo Lacaniano, me ocorreu um sentimento profundo de que talvez fosse a minha última oportunidade para ver o mar antes de retomar de vez a velha e enfadonha rotina de casa-estágio-faculdade-casa.
A princípio, imaginei exercitar um pouco as minhas vaidades burguesas em Balneário Camboriú, onde poderia aproveitar os preços reduzidos da baixa-temporada e me hospedar em algum hotel muito confortável à beira-mar, para tentar escrever mais algum capítulo da minha atravancada Dança dos Ventos ― novela enrolada na qual venho trabalhando desde 2002, aproximadamente ― quando me ocorreu estarmos em pleno inverno, época na qual verifica-se a aproximação de um visitante muito interessante em algumas praias ao sul do estado e na região de Florianópolis: cardumes de Baleias Francas, que migram durante o inverno para o hemisfério norte a procura de águas mais quentes para o acasalamento.
Resolvi então prolongar um pouco mais a minha solidão na estrada e dirigir algumas horas para ver se teria sorte em desfrutar, ao menos por alguns momentos, da companhia desses últimos seres titânicos, capazes de cruzar o planeta a nado-livre através de toda a imensidão azul de seus infinitos oceanos desde muito antes dos animaizinhos “pensantes” aqui da superfície sequer imaginarem algum dia virem a andar sobre duas pernas.
Pergunto-me que tipo de abençoada coincidência, levou “O Cara” lá de cima a colocar na rota desses seres magníficos ― sem dúvida alguma, uma das obras-primas de Sua Criação! ―, praias tão próximas de nós? Vivemos tão perdidos em meio ao nosso louco e incessante movimento pela sobrevivência aqui no alto da superfície, que sequer reparamos quão próximas de nós estão as coisas mais grandiosas do Universo.
A experiência de dirigir na BR-101 a noite pode ser muito assustadora. Principalmente no trecho entre Florianópolis e Porto Alegre (o chamado “Corredor da Morte”), onde a pista não é duplicada e o tráfego de caminhões é intenso, por conta do porto de Itajaí. Principalmente quando se está dirigindo um Celta 1.0, que é um carro leve e de baixíssima estabilidade: o acostamento é estreito e os caminhões te ultrapassam tão de perto, mas tão de perto ― tirando fina mesmo! ―, que você chega a sentir as quatro rodas se erguerem do asfalto e o volante ficar completamente solto nas suas mãos quando se entra no vácuo de um desses monstros vomitadores de diesel (o que é completamente inevitável quando se está no “Corredor da Morte”). Sem falar nos faróis ofuscantes que vêm em sentindo contrário e que acabam te cegando mesmo, devido ao mau-estado de conservação das guias e faixas-sinalizadoras da rodovia.
Bem, foi após enfrentar algumas horas estressantes atrás do volante ― salvas apenas pelo blues de Willie Dixon e pelo rock’n’roll de Led Zeppelin ― que eu cheguei na casa de um velho conhecido, na localidade chamada Areias do Macacú : uma praia completamente deserta, separada de um pequeno vilarejo pelas dunas, composto de uma escola e uma capelinha, próximo ao município de Garopaba. Os moradores vivem da pesca e da pecuária, e a gadaria (muito boi zebu e vacas nelori) corre solta pelos vastos pastos da região, que conta ainda com uma magnífica lagoa de água-doce e a presença de duas cachoeiras liberadas para banho durante o Verão. Toda essa magnífica beleza natural ― já demonstrando avançados sinais de infecção pelos sintomas da vida moderna ― conta ainda com o acréscimo, durante três meses ao ano, da presença de uma visitante milenar em sua existência e misteriosa em seus desígnios: a Baleia Franca.
João Pirata é um gaúcho de Porto Alegre que, cansado da rotina da vida urbana, refugiou-se em Areias do Macacú no final da década de sessenta e há quase quarenta anos vive por lá, numa pequena propriedade, composta de um casarão e duas meias-águas ao pé de uma grande duna de areia. Durante a alta-temporada, transforma a casa da frente numa pizzaria (conhecida como “A Toca do Pirata”) para atender aos turistas e fora da temporada sobrevive fazendo trabalhos de ourives e bijuterias para boutiques e joalheiras de Florianópolis que revendem seu trabalho pelo triplo do preço que lhe pagam. Conheci-o em meados da década de 90, quando eu ainda era músico e rodava as praias do litoral sul durante o verão, em busca de trabalho e estadia barata para curtir as férias. Naquela ocasião (acho que foi no Verão de 1995), o Pirata me deu trabalho e me acolheu em sua residência, originando dali uma amizade que dura até os dias de hoje.
― Tocaio! ― recebeu-me gritando em carregado sotaque gaudério, o termo que no dialeto do sul significa “xará”. Tamanho entusiasmo, revelava realmente o peso que a solidão dos meses de inverno deviam exercer sobre a mente daquele homem, longos dias e longas noites debruçado sobre seus trabalhos artesanais, desfrutando de conversa e companhia humana apenas em momentos raríssimos.
Após fazer-me entrar e me arranjar um confortável quarto de frente no segundo andar da casa, jantamos um delicioso caldo de peixe e fomos nos sentar nas redes da varanda para fumar cigarros de palha e conversar sobre a vida ― campeonato paranaense, campeonato gaúcho, o aumento da criminalidade na região, a aproximação das areias da duna que começavam a ameaçar sua propriedade, o aparecimento cada vez mais escasso das baleias por aqueles lados devido ao aumento absurdo da poluição nas águas durante os últimos cinco anos, etc. Foi quando eu sugeri uma caminhada noturna pela praia deserta, para exercitar as pernas cansadas de horas de direção e espairecer ainda mais as idéias, inundando os pulmões com a brisa-marinha e colocando as solas dos pés em contato com a areia gelada da madrugada.
Pirata ― como não poderia deixar de ser ― levou uma garrafa da melhor “amarelinha” da região para esquentar nossa caminhada e, enquanto nos afastávamos da estradinha de terra rumo à direção do caminho de pedras que conduzia à praia, ele me contava a intrigante história do casal de velhinhos que eram os donos do melhor alambique das redondezas e há mais de cinqüenta anos dedicavam-se à arte de destilar cachaça para a localidade. Falava-me sobre como o velho havia ficado meio destrambelhado depois que a velhinha morrera de cirrose hepática no ano anterior, deixando-o sozinho no mundo. Desde então, ele (que também sofria de cirrose!), passara a vagar pela praia de madrugada, em estado delirante, declamando passagens do Evangelho e proferindo sentenças em dialeto carijó, idioma dos antigos índios que habitavam a região. Achando muita graça naquilo, comentei:
― Os fabricantes de cachaça doentes de cirrose? Será que foi o tédio da vida interiorana ou foi mesmo o “amor pela profissão” que os levaram a abusar do próprio veneno que produziam?
― Eles não bebiam! ― respondeu-me o Pirata, para minha total surpresa e consternação. ― Eram religiosos convictos e tinham na fabricação da aguardente, um modo de subsistência que lhes foi transmitido de pai para filho desde os tempos dos primeiros colonos açorianos.
Esclareceu-me então, que o fato que os levou a desenvolver a doença, foi a exposição diária prolongada por horas a fio aos vapores etílicos exalados pelo velho destilador de cobre. O álcool inalado pode fazer tantos estragos ao sangue quanto aquele ingerido deliberadamente pela via oral, nos balcões de bares e outros estabelecimentos congêneres, onde homens e mulheres de bem vão para esquecer os últimos resquícios de pudor e sobriedade após mais uma extenuante jornada de trabalho.
― Ossos-do-ofício... ― concluiu de maneira sarcástica.
Enquanto caminhávamos, eu me deparei com um estranho brilho no meio da trilha de areia, contorcendo-se em meio a marcas de pneus: uma pequena cobra-coral, provavelmente atropelada por algum jipe que fazia trilha naquela região. As escamas vermelho-e-pretas, esfoladas em diversas partes do pequeno corpo cilíndrico; a boca abrindo-se e fechando-se num esgar de agonia, revelava as presas pontiagudas, carregadas de veneno gotejante. Eu estava destampando a garrafa de água-mineral para jogar em cima do réptil quando o Pirata interveio:
― Não vá ajudar um bicho desses não! Coral é a mais traiçoeira de todas as serpentes: ela não arma bote, ela pica no calcanhar. A gente ajuda ela agora, damos dois passos e ela nos ataca pelas costas...
Continuamos caminhando, enquanto eu reparava o quanto a paisagem estava escura devido ao céu intensamente nublado, apesar de um tímido conjunto de constelações esforçar-se ao máximo para aparecer por entre uma pequena rachadura no pesado reboco de nuvens cinzentas. Numa certa altura da caminhada, uma simpática gaivota ― provavelmente sofrendo de insônia ou de algum inesperado ataque de gulodice noturna ― resolveu nos fazer companhia e passou a nos acompanhar pela praia, caminhando ao nosso lado como se fosse o mais fiel dos cachorrinhos adestrados. Ou talvez quisesse simplesmente se certificar que aqueles incômodos intrusos fora de hora não fossem pisar distraidamente no ninho que ela com tanta dificuldade vinha tentando aquecer, em meio àquelas geladas areias de inverno.
O fato é que esta gaivota nos acompanhou aproximadamente durante uns dois quilômetros de caminhada. Parando quando parávamos. Apressando os desajeitados passos ― passos de criatura que não decidiu muito bem se pertence à terra, à água ou ao ar ― quando apressávamos os nossos. Alçando pequenos e rasteiros vôos para nos acompanhar quando empreendíamos pequenas corridas com a intenção de nos certificar realmente se o bicho estava mesmo a nos seguir. E assim aconteceu até não nos restar mais dúvidas.
Eu não me agüentava de tanto rir! Imagine só: uma gaivota que nos seguia, parava quando a gente parava e ainda por cima olhava para a gente com um tamanho olhar de compreensão quando falávamos com ela, que até dava vontade de jogar um pauzinho longe, na areia, só para ver se ela ia trazer de volta na boca, abanando o rabo e exigindo uma nova bateria de elogios entusiasmados e talvez ― ela não poderia saber! ― um delicioso e prateado peixe fresco tirado do bolso do casaco, como recompensa pela façanha. Este teria sido sem dúvida o fato mais impressionante da viagem, se não fosse o que aconteceu logo em seguida...
Após mais uns quinze minutos de caminhada, avistamos na areia, cerca de uns trezentos metros de distância, uma figura cambaleante que mais lembrava um dos gaúchos maltrapilhos e miserabilizados pela Guerra Farroupilha, saído de algum seriado de época da Rede Globo. Gesticulava demais, discursando para o mar um entusiasmado sermão, do qual o vento trazia até nossos ouvidos fragmentos de uma palavra ou outra, a maioria incompreensível. Pirata virou-se para mim e disse:
― Esse aí não morre tão cedo. É só falar nele que ele aparece... Mesmo na praia deserta e a uma hora dessas da noite!
Quando estávamos a mais ou menos uns cento e cinqüenta metros da estranha e ensandecida figura, o vulto simplesmente parou de esbravejar e de movimentar os braços que agitava alucinadamente, como que percebendo a nossa presença. Senti um frio na barriga. Mas, quando nos aproximamos mais uns cinqüenta metros, o estranho e magérrimo “gaúcho” parou de olhar o mar e virou a cabeça para nos encarar fixamente. Neste momento, tive vontade de me virar, largar o João Pirata ali mesmo e correr com todas as forças que ainda restavam às minhas pernas. Difícil descrever o medo que senti ao perceber, à medida que nos aproximávamos mais daquela sombria e deslocada figura, que seu semblante exibia-nos duas brilhantes e bem cuidadas fileiras de dentes. Sim: o inacreditável e completamente louco “gaúcho açoriano” das dunas catarinenses, sorria-nos com uma expressão no olhar, que faria qualquer Charles Mason da vida parecer o mais inofensivo dos Teletubbies.
― Puxa, Pirata... Você tem certeza que é uma boa idéia chegar nessa figura para trocarmos uma idéia?
― Fica na boa, meu tocaio! ― respondeu-me com olhar de soslaio e uma imensa gargalhada enrustida no fundo da garganta que ameaçava vir à tona a qualquer momento. ― Você irá conhecer o maior mestre de alambique da região. Figura de extrema gentileza e simpatia para com todos. É só você não se assustar com esse lado... hmmmm... meio “profético” do nosso amigo. Principalmente porque as suas “profecias”, na imensa maioria das vezes (e isso só começou após a morte da velha) têm se mostrado de uma precisão impressionante. Até agora ele não errou nenhuma...
Bem, fiquei quieto e decidi que ia deixar o Pirata conduzir aquela situação da maneira que já devia estar acostumado a fazer. Não só porque eu não estava me sentindo nem um pouco à vontade para ficar “trocando idéias” de madrugada com um psicótico em estado de delírio, no meio de uma praia deserta; como também não havia entendido coisa alguma daquele papo de “profecias de precisão impressionante” ― e um lado meu tinha medo de ficar curioso e acabar descobrindo.
― Boa noite, Sr. Engarrafador de Sonhos Perdidos e Ilusões Despedaçadas, Henrique Miguel dos Anjos de São Gabriel! ― gritou-lhe o Pirata enquanto lhe estendia os dedos entreabertos para um amistoso aperto de mãos.
― Que o Arcanjo São Gabriel esteja com aqueles que vagam pelas areias da praia durante a noite! ― retrucou-nos em voz gutural a estranha figura parada na parte mais rasa da arrebentação, com a espuma das ondas a cobrir-lhe as botas enterradas na areia até a altura dos tornozelos e as abas do chapéu de feltro, estilo Bento Gonçalves, carcomidas pelo tempo a esconder-lhe os olhos que através das sombras nos encaravam.
― Quero apresentar-lhe o João Rosa, meu amigo lá de Curitiba, capital do Paraná. ― apresentou-me ao estranho o Pirata; apresentação à qual eu imediatamente estendi a mão.
― Muito prazer, Seu Henrique... Eu sou o João, lá de Curitiba.
― Sabe, “Seu Doutô”... Faz muito tempo que elas não se aproximam aqui da praia como antigamente. Antigamente, elas se ‘aproximava’ muito mais! Antigamente dava p’ra vê elas fazênu amor ali na espuma, bem onde as ondas quebram. A poucos metros de onde nós tá conversanu agora!
Aquilo me impressionou demais, de uma maneira surpreendente. Como poderia aquele andarilho saber acerca das minhas qualificações acadêmicas? Como ele poderia saber que eu era um universitário? E acima de tudo: como poderia saber acerca das baleias? Como ele adivinhara o verdadeiro motivo de eu estar caminhando pela praia naquela noite fria e me fornecera uma resposta, muito antes de eu sequer ter formulado a pergunta em pensamento?
― O senhor está falando sobre as baleias, Seu Henrique? ― retruquei, tremendo nas bases sem ter nada melhor para falar.
― Bem... ― pigarreou o João Pirata, salvando-me da situação embaraçosa na qual me encontrava. ― O que o senhor acha, seu Henrique, de sentarmo-nos na praia, fazermos uma bela fogueirinha e um chimarrão, para conversarmos enquanto eu e meu amigo paranaense terminamos de degustar essa garrafa de “amarelinha”, produzida e engarrafada com tanto carinho por suas próprias mãos de “artista-artesão”, detentor da arte milenar de transformar a garapa da cana no licor que seduz, embriaga, e traz lá dos céus a inspiração para tantos violeiros e poetas que durante a noite, andam cambaleantes pelas areias da praia, declamando versos à luz do luar...?
O velho e viúvo andarilho, dono da destilaria local e “mensageiro do Arcanjo São Gabriel”, deu-nos um sorriso e, por alguns instantes, tive a impressão de que, por debaixo das carcomidas abas do chapéu que ele usava, ele nos piscou um olho amarelado pelos vapores etílicos da cirrose. Como que nos agradecendo pelo gentil convite de partilhar o chá, a conversa e o fogo.
Enquanto o Pirata tirava jornal e uma garrafa térmica de dentro da sua carcomida mochila verde-oliva, de hippie velho de guerra, eu me afastava em direção às árvores aos pés das dunas na intenção de recolher alguns gravetos para ajudar na fogueira. Enquanto caminhava em meio aos esquálidos arbustos, ponderava ainda sobre o episódio da cobra ― tão frágil e necessitada em meio à sua dor, mas ainda assim com as presas gotejantes de veneno.
Aproximei-me alguns minutos depois, trazendo uma braçada de pequenos galhos secos de arbustos e o Pirata e o Velho Henrique já haviam feito um pequeno buraco na areia da praia, com a intenção de proteger as chamas do vento gelado que soprava. Eu havia acabado de me sentar, quando o Velho começou a falar, de uma maneira que parecia captar meus pensamentos diretamente de dentro da minha cabeça:
― Ela tinha veneno mas também faz parte da Criação de Nosso Senhor...
― O quê? O senhor está falando da coral que encontramos no meio da est... ― fui silenciado pelo Pirata, que pousou um pulso firme sobre o meu ante-braço ao mesmo tempo em que me piscava o único olho que lhe restava, como que querendo me dizer “não interrompa as divagações do velho”.
― “Sim... ― continuou o velho como se não tivesse prestado a mínima atenção à minha interrupção ― Ela podia ser uma criatura venenosa, mas não tinha culpa de sua condição. Um pouco da sua água a teria ajudado a sobreviver. E você provavelmente estaria ajudando a serpente que iria lhe tirar a vida, mas nem você nem ela teriam culpa, pois não há um único grão de areia no universo que ao ser levado pelo vento, não o seja por vontade do Senhor!
Eu estava estarrecido. O Pirata olhava maravilhado para o Velho Henrique, que falava pausadamente, o reflexo das chamas a trepidar-lhe sombras fantásticas no rosto. O olhar amarelado sem desviar-se um único segundo da espuma branca que marcava o seu limite a poucos metros de onde estávamos sentados:
― “Antigamente, as náiades vinham aos milhares. Não tinham medo. A água era limpa.
― O senhor está falando das baleias? ― interrompi novamente, esquecendo-me completamente da advertência do Pirata. Naquele momento eu já estava tão fascinado pelas sentenças “absurdas” do Velho, que me sentia como um netinho ouvindo histórias aos pés do avô, querendo mais é dar bastante “corda” para ele falar bastante.
― “Você me entendeu... ― concluiu o velho. E fazendo-me lembrar de um cd-player com defeito, que ficasse pulando as faixas de um disco desordenadamente, ele emendou uma narrativa que, aparentemente, nada tinha a ver com tudo o que ele havia falado até então. Somente algum tempo depois ― principalmente agora, que escrevo estas mal-datilografadas linhas ― vim a perceber o grande senso de Unidade, de Equilíbrio e a grande sabedoria das palavras daquele velho e louco mensageiro do cosmos, leitor da Bíblia e destilador de aguardente. Ele começou mais ou menos assim:
― “Vou te contar uma história que aconteceu há muitos e muitos anos, aqui mesmo, nas areias desta praia. Muito antes do Grande Tupã colocar o primeiro de seus filhos carijós para cultivar e prosperar onde a grande Me-Boi deixou seu rastro pelas bordas das águas de Iara, havia um grão-de-areia que era apenas mais um entre milhões de milhares de infinitos outros grãos-de-areia exatamente iguais à ele ...
“Era exatamente esse o seu grande obstáculo, sua grande tristeza, a imensa cortina de escuridão que fazia com que ele estivesse mal com a sua própria existência: ele não queria ser como os outros. Não queria ser apenas mais um no meio de milhares.
“Todas as noites, ele ficava largado no meio da praia ― apenas mais um entre milhares ― e com muita inveja, contemplava o firmamento, maravilhado com o brilho das estrelas e com as características muito próprias, muito individuais de cada uma: cada qual com seu nome próprio e seu lugar inconfundível no firmamento. Como gostaria de vagar e ser conhecido entre elas! Como gostaria de ter também sua luz-própria e seu próprio calor, em vez de ser apenas mais um frio, opaco e desconhecido grão de areia. Apenas mais um entre milhares...
“Começou então a sonhar em ser um Cometa. Um belo cometa que atrairia a atenção de todos na Terra e que correria livremente pelo espaço deixando um rastro de luz por entre suas irmãs estrelas e encantando para todo sempre seus irmãos grãos-de-areia com a beleza de suas cinco pontas.
“Mas eis que um dia, um vento muito forte começou a soprar e o pequeno Grão-de-Areia sem lugar para se agarrar, sentiu-se ser separado dos outros milhares de milhões de grãos-de-areia iguais a ele e, sem a menor possibilidade de escolha, viu se levado embora pelos ares, arrastado à deriva pelos braços da impiedosa ventania, que sem a menor cerimônia, rodopiou-o rumo às alturas e depois afastou-o da terra para muito longe, muito distante em direção ao mar, para além da linha do horizonte...
“E quando a ventania finalmente largou o nosso amigo Grão-de-Areia, ele foi precipitado nas águas do mar e desapareceu, engolido pelas profundezas das fossas abissais. Apenas um grão-de-areia, sozinho no meio do frio, da escuridão e da imensidão das águas sombrias do Oceano. Até mesmo o firmamento e o brilho das estrelas foram-lhe arrematados pela impiedosa ventania que arremessou-o ao fundo das águas.
“E assim, passaram-se décadas, séculos e milênios. Longas Eras em que o pobre Grão-de-Areia viveu nas profundezas dos mares sendo jogado de lá para cá pelas marés; sendo revolvido pelas ondas que o arrebentavam de encontro ao solo e o traziam quase à tona, apenas para arrastá-lo rumo às profundezas novamente para então começar tudo de novo...
“Sentia saudades dos seus irmãos ― os mesmos que outrora considerava tão insignificantes! ― mas de quem, em companhia, usufruía ao menos do brilho das estrelas para admirar. Lembrou-se do seu Grande Sonho, de um dia vir a tornar-se um Cometa, e pensou: ‘Oh, Grande Tupã! Como fui tolo e arrogante um dia!’.
“E foi justamente nesse dia, em que o Grão-de-Areia percebeu o tamanho de sua tolice e de sua pretensão; o tamanho de sua arrogância em relação aos Grandes Desígnios da Existência, que uma onda veio sem o menor aviso e devolveu-lhe à superfície da terra, jogando-o novamente na areia da praia em meio aos seus outrora ‘irmãos’, grãos-de-areia.
“Ele olhou com admiração o céu, após todos aqueles anos passados nas profundezas e logo em seguida, percebeu que não era mais IGUAL aos outros grãos-de-areia da praia: algo nele havia mudado radicalmente e ele percebeu que de uma maneira que jamais imaginara, havia realizado o seu grande sonho...
“Não havia se tornado um cometa, mas havia se tornado uma Estrela-do-Mar”.

Ficamos alguns minutos em silêncio após a narrativa do Velho e, na hora em que a fogueira estava quase se apagando ― indicando que se aproximava o momento de voltar para casa ―, reparei que o céu estava inteiramente estrelado: as nuvens haviam se dissipado, revelando inclusive uma bela lua quarto-crescente, que deixava uma trilha dourada magnífica sobre as águas completamente escuras. Guardamos as coisas de volta na mochila do Pirata e nos despedimos do Velho, que se afastou na direção oposta, provavelmente para continuar sua caminhada até a chegada dos primeiros raios-de-sol.
Num determinado momento, durante a caminhada de volta, Pirata chamou-me a atenção ― “olha só quem está de volta!” ― para uma inusitada companhia: a gaivota que havia nos acompanhado no começo do trajeto (e que provavelmente permanecera por perto durante aquelas horas de prosa), voltara a nos fazer companhia durante o percurso. Quando estávamos nos aproximando das pedras, para deixar a praia e retomar a estrada de terra que levava de volta à residência do Pirata, ela se adiantou aos nossos passos, empertigou-se na ponta de uma pedra baixa e, como que nos dando adeus, bateu as asas e mergulhou decidida no oceano. Esperei ainda alguns poucos minutos para ver se a via submergir com algum peixe na boca, mas ela não retornou à superfície.
No dia seguinte, dirigindo de volta para Curitiba, já me preparando espiritualmente para retomar a rotina do “casa-estágio-faculdade-casa”, eu pensava no imenso significado daquela história toda que acabava de acontecer comigo e no “porquê” daquela viagem, que no final de tudo, dava a impressão de ter me conduzido até lá apenas para ouvir uma louca história, contada por um velho louco no meio de uma praia fria. Não ganhei a bela visão das baleias, mas ganhei alguma coisa bem maior...
E essa coisa bem maior é a certeza de que um dia eu escreveria esta história. E esta história seria escrita e dedicada para uma pessoa muito especial, que irá lê-la e dela irá retirar também algo que é bem maior que estas linhas e estas folhas em que ela está contida agora.
Mas esse algo “maior” eu não saberia dizer o que é (será que alguém sabe?), afinal de contas, jamais saberemos para onde o Vento levará os Grãos-de Areia...


João Rosa - Curitiba, 22 de junho de 2009.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Sobre "Saco de Ossos" e os fantasmas de Sara Laughs...



O livro é uma paulada do começo ao fim. Literatura Gótica da melhor qualidade. Além do mais, pode surpreender aos fãs tradicionais de Stephen King, por tratar-se de uma legítima "ghost story", contando com todos os elementos característicos do gênero e deixando de lado um pouco os fatores "psi" e "sci-fi", tão explorados por King em sua literatura. É sem dúvida alguma, uma história sobre a solidão e sobre como ela mexe com a cabeça da gente, principalmente quando aquilo que de mais sólido possuímos na vida, se esvai em fumaça de uma hora para a outra - trazendo à tona circunstâncias e acontecimentos até então desconhecidos, que servem para nos mostrar que talvez a nossa vida (e as pessoas que mais amamos) não fossem exatamente aquilo em que "tão solidamente" acreditávamos...
Mike Noonan é um escritor famoso, considerado um dos maiores romancistas de sua época. Leva uma vida feliz com sua esposa Joanna (ou simplesmente "Jo", para os íntimos), com quem divide uma existência pacata e reclusa em algum lugar da Nova Inglaterra. Possuem uma magnífica casa de veraneio (batizada por Jo de "Sara Laughs") à beira de algum grande lago no Estado do Maine, onde compartilham os momentos mais especiais de seu casamento, e também, onde Mike escrevou alguns de seus melhores romances. Tudo vai muito bem na vida dos dois, exceto por um pequeno e frustrante detalhe: Mike não pode ter filhos, devido à uma previamente diagnosticada "baixa contagem de espermatozóides" (com esse argumento aparentemente simples, King introduz um elemento freudiano absolutamente enlouquecedor na trama!), o que constitui a principal "encanação" no contexto da maravilhosa relação que vive o casal. Relação que a gente passa a conhecer profundamente, através dos incontáveis flashbacks, tão explorados por King ao longo da narrativa.
O acontecimento central - e essa é a primeira "grande porrada" que o livro te dá, logo no segundo parágrafo - é que Jo (a mocinha da história) é morta de um jeito brutal e estúpido bem no início da trama: atropelada por um caminhão de lixo que manobrava no estacionamento de uma drugstore, onde ela fora comprar seu habitual remédio para sinusite, deixando Mike viúvo e com um fato estarrecedor com o qual ele precisará aprender a lidar, uma vez que Joanna não está viva mais para prestar esclarecimentos: Jo estava grávida!
Quatro anos se passam, e Mike se torna um espectro do escritor bem sucedido que fora um dia. Completamente traumatizado pelas circunstâncias da morte de sua mulher e atormentado por questões insolúveis acerca da fidelidade de Jo, começa a viver uma terrível e assustadora menopausa criativa: simplesmente não consegue mais escrever. Passa horas sentado diante do computador, com a janela aberta no editor de textos, o cursor piscando na página em branco, sem uma única linha escrita. O que vinha lhe salvando perante a editora com a qual tem um contrato milionário de lançar "um livro por ano", era o fato de ter guardado em casa, dentro de um cofre, os manuscritos de quatro romances inéditos, escritos por ele nos tempos de faculdade e com os quais vinha dando continuidade à sua relação contratual. Porém, o último deles fora entregue no começo do ano, e chegava a hora dele ter que apresentar um novo trabalho para o seu editor (que não fazia nem idéia de que a fonte literária de Mike havia "secado" junto com a morte de Jo!)... Por uma questão de sobrevivência, Mike precisa voltar a escrever, de qualquer jeito! Ou então perderá sua querida Sara Laughs, a magnífica casa de campo, que constitui a ÚNICA LEMBRANÇA boa que lhe resta dos dias felizes de seu casamento.
Decide então mudar-se para Sara Laughs, na esperança de que as recordações o estimulem a voltar a escrever, mas descobre que a presença de Jo em cada pequeno detalhe da casa é praticamente sufocante. É quando começam os pesadelos e as crises de sonambulismo...
Mike começa a se deparar com mensagens escritas na porta da geladeira com os imãs de letrinhas - mensagens que parecem "acusar" Jo de traição; depara-se com provas de que Jo esteve freqüentemente em Sara Laughs na companhia de outro homem nos últimos meses de sua vida; encontra na gaveta de sua escrivaninha, o esboço de um romance que Jo estava escrevendo sem jamais haver lhe comentado o assunto. Mike começa a enlouquecer...
Entre mergulhos solitários no lago, à sombra de uma velha bétula e solitários passeios de carro pelo balneário, fervilhando de turistas em plena temporada, ele vive sozinho a sua desventura fantasmagórica (digna da mais assombrada das mansões vitorianas do séc. XIX) até chegar a uma conclusão estarrecedora: Sara Laughs está viva!!!
Começa então uma incansável pesquisa por parte do escritor, em uma desesperada tentativa de identificar os fantasmas de Sara Laughs, da qual Joanna era apenas o mais inofensivo deles. Cada nova descoberta é uma revelação - não apenas acerca de sua própria vida conjugal (à qual ele conhecia muito menos do que poderia supor), como de grandes segredos guardados pelos habitantes da pacata cidade lacustre de veraneio... Segredos relacionados a vergonhosos crimes sexuais, ocorridos no passado com a conivência de todos os habitantes e diretamente relacionados à própria Sara Laughs. Mas isso vocês terão que ler o livro para descobrir!
No geral, "Saco de Ossos" (Ed. Objetiva, 1998 - 754 págs.), é um ótimo entretenimento (apesar de ter uma parte meio "mela-cueca", quando Mike se envolve sentimentalmente com a garota do trailer e sua filhinha de seis anos de idade) e tem algumas passagens realmente assustadoras (como aquela em que o sino pendurado no pescoço do alce empalhado na sala, começa a tocar sozinho no meio da noite, da mesma maneira que Jo o agitava quando ela e Mike estavam transando; ou o lance das corujas de plástico no porão - só mesmo lendo!), mas me deixou com um gostinho de "quero mais"...
Não gostei do final (que apesar de não ser exatamente "feliz", foge um pouco da total desgraceira já característica das obras de King) e também não gostei da "baboseira kardecista" que o autor pareceu - a mim pelo menos - querer passar como mensagem no final das contas.
De qualquer maneira, fica dada a minha dica...

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

As Horas - em tempos de inclusão digital (parte 2)

Na Mitologia Romana, AS HORAS são as divindades das Estações. São três: Eunômia, Dirce e Irene - ou seja: respectivamente Disciplina, Equanimidade e Paz. Os gregos as chamavam "Talo", "Auxo" e "Carpo" (nomes que evocam a idéia de "nascer", "crescer" e "frutificar"). São elas geralmente representadas como três donzelas de porte gracioso, segurando muitas vezes uma flor ou uma planta (símbolo das colheitas, da florescência e dos ciclos sazonais). Eram filhas de Zeus (o Todo-Poderoso) com Têmis (a Justiça) e irmãs das Moiras (os Destinos). No Olimpo eram elas as encarregadas de desatrelar os cavalos do carro de Apolo (o Sol). Foram as responsáveis pela educação de Hera (filha de Cronos, o Tempo), a maior de todas as deusas do Olimpo. As Horas possuíam um duplo aspecto: como Divindades da Natureza, presidiam ao ciclo da vegetação; como Divindades da Ordem (filhas de Têmis, a Justiça), asseguravam a estabilidade social. Apenas tardiamente - por volta do séc. XIV, com a adoção do chamado Tempo Italiano -, é que foram utilizadas para personificar a unidade fundamental de tempo, provavelmente por conta de uma tradução abusiva de seu nome em latim: "Horae". Mas isso não passa de pura convenção (adotada oficialmente pelo Papa Gregório XIII no séc. XVI), como toda e qualquer ficção criada pelo homem; uma tentativa desesperada de estabelecer um "nexo temporal" no Universo Caótico em que vivemos. Convenção aliás, que carece bastante de critérios científicos e que, estranhamente, acabou por ESCRAVIZAR a mesma Humanidade a qual deveria servir e organizar...
A Revolução Francesa chegou a ABOLIR esta convenção gregoriana de tempo, como forma de simbolizar a ruptura com a Velha Ordem, e instituiu a partir de 1792, um novo calendário de base solar, cujo o ano começava no equinócio de outono (dia 22 de setembro, no hemisfério norte). Conseqüentemente, o dia e as horas também sofreram alterações fundamentais em sua estrutura e concepção. O CALENDÁRIO REVOLUCIONÁRIO estabelecia o TEMPO da seguinte maneira:

um ano = 12 meses;

um mês = 03 semanas;

uma semana (chamada 'decâmero') = 10 dias;

um dia = 10 horas;

uma hora = 100 minutos;

um minuto = 100 segundos.

Os meses também foram reinventados:

1) Vindimiário (de 22 de setembro a 21 de outubro);

2) Brumário (de 22 de outubro a 20 de novembro);

3) Frimário (de 21 de novembro a 20 de dezembro);

4) Nivoso (de 21 de dezembro a 19 de janeiro);

5) Pluvioso (de 20 de janeiro a 18 de fevereiro);

6) Ventoso (de 19 de fevereiro a 20 de março);

7) Germinal (de 21 de março a 19 de abril);

8) Floreal (de 20 de abril a 19 de maio);

9) Pradial (de 20 de maio a 18 de junho);

10) Messidor (de 19 de junho a 18 de julho);

11) Termidor (de 19 de julho a 17 de agosto);

12) Frutidor (de 18 de agosto a 20 de setembro).

Este calendário revolucionário vigorou na Europa durante TREZE ANOS, de 22 de setembro de 1792 a 31 de dezembro de 1805, quando Napoleão I, visando reestruturar suas relações com o clero, ordenou o restabelecimento do calendário gregoriano. Prova irrefutável de que nada é ABSOLUTO! Principalmente o RELÓGIO - que hoje tanto nos controla e escraviza...

Mas e em tempos de 'horas-bytes'? Como lidar com uma convenção que não foi "convencionada", mas sim imposta de forma silenciosa e inconsciente???



*Referências Bibliográficas: (Pierre Grimal, "Dicionário da Mitologia Grega e Romana"); (Jacques Castelnau, "Os Tentáculos da Repressão").

sábado, 22 de dezembro de 2007

As Horas - em tempos de inclusão digital (parte 1)

Estou de volta. Após alguns dias de ausência, devido a um problema técnico no meu computador, descubro que ficar longe disso aqui não é assim tão ruim: boa oportunidade para fazer coisas dentro de uma "escala natural" de tempo.
Digo isso, por acreditar realmente que ao ligar o Windows e começar a navegar por um oceano de janelas abertas - cada uma linkada a uma pessoa, a um site, a um assunto diferente -, nossa mente começa a contar o tique-taque das horas num ritmo absolutamente diverso daquele ao qual estamos acostumados quando voltados à realidade fora do microcosmo virtual. E é exatamente essa ambigüidade das horas (que experimentamos quando conectados ao Espaço Virtual) que me leva a pensar que o RELÓGIO - grande tirano do Mundo Exterior e inimigo-mor da subjetividade, nesta época em que vivemos - não passa de uma grande FRAUDE que está com os dias contados!
Claro que não há nada de novo ou de genial numa constatação dessas. Stephen Hawking já demonstrou a falácia das horas em seu "O Universo Numa Casca de Noz" e eu não preciso ficar aqui repisando teorias quânticas apenas para convecê-los da seriedade do que estou falando. O fato é que o relógio já era! E a internet é o carrasco que irá sepultá-lo definitivamente... só não dá para dizer se isso é melhor ou pior!
A cerca de quinze anos atrás, era simplesmente inconcebível a idéia de que TODOS os computadores da Terra estariam interligados. Hoje, ainda estamos naquela fase inicial de deslumbramento, tão característico das "Corridas do Ouro", que de tempos em tempos a humanidade experimenta: seja em função da descoberta de um continente novo ou da invenção de uma nova máquina, capaz de poupar homens e de aumentar a lucratividade. O mercado está cheio de hardwares cada vez mais compactos e de softwares cada vez mais miraculosos. Pensa-se muito nas conseqüências espaciais desta "Revolução Digital" - o que fazer com o lixo tecnológico; como gerir relações comerciais originadas na internet, etc. - mas não se ouve falar quase nada (pelo menos na grande mídia) sobre as conseqüências PSÍQUICAS de toda essa conectividade para a Humanidade a longo prazo...
Ao interligarmos os computadores, na verdade interligamos as MENTES! Mas também inauguramos a Era dos "relacionamentos desconectáveis"... Livramo-nos do chato, do diferente, do desagradável com um simples clicar de botão direito com um mouse. Reinstituímos a censura sem o menor pudor de bloquear o acesso a conteúdos "indesejáveis". Geramos uma nova CLASSE DE EXCLUÍDOS: os off-liners.
Conseqüentemente, criamos uma nova unidade de tempo, a qual apenas uma pequena elite (pequena para a realidade periférica da América Latina) tem acesso: a hora-byte.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Comendo caranguejos vivos...

Sábado passado - por ocasião do tempo bom e do saco profundamente cheio após uma semana inteira de provas e avaliações - peguei o carro, meia-dúzia de cd's para curtir um bom e velho rock'n'roll, passei na casa de um camarada com quem não trocava idéia fazia tempo e me mandei para a Estrada da Graciosa, na intenção de respirar um pouco de ar puro, curtir a natureza e é claro, um belo barreado e uma cachacinha de banana lá em Morretes (cidadezinha ao pé da Serra, a cerca de 70km de Curitiba).
Da viagem em si não tenho muito para contar, a não ser aquela mesma babaquice de sempre, muito bem conhecida pelos curitibanos: famílias tirando fotos; otários e otárias em trajes de banho tentando encarar aquela água insuportavelmente gelada do Rio Nhundiaquara; barraquinhas vendendo chips de aipim e balinhas de banana. Tudo exatamente como se poderia esperar de um final-de-semana nas cidades serranas...
O que eu pretendo lhes contar, é o acontecimento ao mesmo tempo insignificante e bizarro que aconteceu logo após o almoço, quando eu e meu amigo esperávamos o barreado dar aquela "abaixada" dentro da barriga para podermos encarar a subida de volta para Curitiba em meio às curvas sinuosas da Estrada da Graciosa...
Então, logo após o almoço fomos nos sentar num banco de praça, bem à sombra do coreto e de frente para o rio, para fazer a digestão e jogar um pouco de conversa fora, quando um velho cabeludo e de barbas longas chegou pedalando uma velha bicicleta com barra circular e se aproximou de nós e de um grupo de garotos que estavam fumando cigarros, debruçados na murada do rio. Ele chegou, com aquele sorriso de felicidade típico dos idiotas e dos débeis-mentais, balbuciando sozinho palavras desconexas. Estacionou sua velha bicicleta, esticou os músculos das pernas e dos braços, estalou os tendões das costas, deu um profundo suspiro e anunciou em voz alta: - "Está na hora do meu lanchinho!".
Dito isso, enfiou a mão num dos bolsos da larguíssima bermuda e retirou de lá um CARANGUEJO VIVO, mexendo muito as pernas e dando pinçadas no ar com suas garras afiadas. Eu, meu amigo e o grupo de garotos, apenas ficamos observando, atônitos, enquanto o velho arrancava uma perna do bicho e a chupava como se fosse a mais deliciosa das iguarias!
- "Mas que falta de educação a minha, não lhes oferecer!" - disse para nós o velho, quando percebeu-se observado. - "Querem uma perninha também? Podem pegar!" - concluiu estendendo-nos a repulsiva guloseima, enquanto arrancava uma das garras como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Os garotos se afastaram, olhando para o velho como se ele fosse uma aparição surgida das Profundezas. Eu e meu amigo ficamos ali, assistindo o inusitado espetáculo gastronômico, enquanto o velho arrancava um a um cada membro do caranguejo e os chupava em seguida, até restar em sua mão nada além de uma carcaça completamente desmembrada - mas com um par de olhos ainda se mexendo.
Foi quando ele olhou para nós e com um ar de profunda sabedoria declarou: - "Não, não... As entranhas não prestam para comer! Tem veneno dentro dos pulmões desses bichos!" - e dispensou o caranguejo, ainda vivo, atirando-o com desprezo dentro do rio. Montou então em sua bicicleta e foi embora, assobiando, feliz da vida.
Uma mulher, que estava trabalhando numa das barraquinhas de chips e balinhas de banana, percebendo a nossa perplexidade, então nos falou: - "Esse senhor era professor aqui na cidade. No começo dos anos 90 ele perdeu a mulher e as duas filhas, num acidente aqui na BR-277 e desde então ele ficou assim!".
Levantamo-nos e fomos embora. Não comentamos o assunto durante a viagem de volta, mas as imagens da cena bizarra não me abandonaram durante a semana.
Estou pensando em voltar lá hoje, para ver se encontro a inusitada figura para trocar uma idéia. Uma pessoa assim deve ter histórias incríveis para contar... E no mínimo, renderia um BELO CONTO!

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Carta a um Professor ( ou "A imensurável cretinice dos Exames Finais")

Um dia desses, por ocasião da proximidade dos "exames finais" na respeitável instituição onde absorvo uma (tão inútil, quanto pomposa) "formação jurídica acadêmica", eu questionava meu professor de Direito Tributário - aliás, um grande amigo meu, por mais que eu discorde em gênero, número e grau tanto do conteúdo, quanto da metodologia por ele aplicada em sala de aula - sobre os tópicos que seriam abordados no dito exame. A resposta dele não poderia ser mais hipócrita e nem refletir com maior precisão o GRANDE VAZIO que impera numa instituição cada vez mais comprometida com o "Grande Comércio Educacional" e cada vez menos imbuída na tarefa de formar Pensadores: "No exame final será cobrado o conteúdo do semestre inteiro".
Resposta vazia, hipócrita e mentirosa, uma vez que, a pelo menos oito anos lecionando nesta instituição, este mesmo professor vem aplicando provas e avaliações sobre os MESMOS TÓPICOS, abordando o MESMO CONTEÚDO PROGRAMÁTICO e utilizando-se dos mesmos "artifícios" e "pegadinhas" para selecionar os mais "aptos" a evoluírem dentro do curso (de acordo com uma lógica comercial e mercadológica), moldando assim o perfil do estudante de Direito, que refletirá em sua futura atuação num mercado de trabalho cada vez mais funcional, o "espírito" da Faculdade de Direito de Curitiba (que muitos desinformados ainda julgam ser a grande representante dos Valores e das Tradições Jurídicas aqui no Sul do Brasil).
Ora, não precisa ser adepto do "pensamento crítico" para perceber que a antiga e "tradicionalíssima" Faculdade de Direito de Curitiba tornou-se APENAS MAIS UMA num mercado de ensino saturado e voltado exclusivamente para a Educação de Massas - abandonando toda e qualquer forma de pensamento individual e PUNINDO o "diferente" através dos mecanismos covardes de SELETIVIDADE, postos em funcionamento através de Exames com critérios avaliacionais duvidosos e da liberdade regulada pela prática de rígidos controles de horário e de porcentagem freqüencial.
Ora... Será REALMENTE desse tipo de acadêmico (vigiado, controlado, monitorado, punido) que a Sociedade Brasileira está necessitada? Já não bastam os "doze mil e muitos" novos bacharéis de Direito que são VOMITADOS no Mercado de Trabalho todos os semestres por incontáveis instituições com critérios análogos de ensino?
Bem, não satisfeito em reproduzir e perpetuar essa INFELIZ cadeia de (mau) funcionamento pedagógico dentro da instituição a qual pertence, este mesmo professor ainda tenta (talvez por sentir suas "verdades absolutas" ameaçadas; talvez por "inveja" de não ter vivenciado durante os seus tempos de graduando uma experiência semelhante) diminuir e ridicularizar iniciativas LEGÍTIMAS e SINCERAS por parte de uns poucos acadêmicos, de levarem algum CONHECIMENTO HUMANO para o meio do ensino de tantas PRÁTICAS BUROCRÁTICAS ineficazes e idealizadas (que em NADA correspondem à realidade que o recém-formado irá encontrar dentro do nosso torpe Sistema Judiciário - regulado pelo poder aquisitivo e pelas distinções de classe), como o fez ao se referir ao Núcleo Crítico (grupo de estudos transdisciplinar, formado por acadêmicos cansados do VAZIO e da AUSÊNCIA de conhecimento humano dentro do curso de Direito) como "um grupo de estudos voltado à Perfumaria".
Pois bem, Professor, como a relação VERTICAL que mantemos por imposição da instituição me PROÍBE com a ameaça de inúmeras sanções administrativas de lhe responder em sala-de-aula à altura da resposta que "o senhor" merecia ouvir, venho por meio desta Sala de Autópsia, dizer-lhe tudo o que eu gostaria e que ficou "entalado" na garganta:

1) em primeiro lugar, lamentar a visão mesquinha e limitada (leia-se "kelseniana"!) que o senhor traz consigo acerca do Direito por acreditar realmente que as relações humanas se limitam ao âmbito da norma e aos limites legislativos e tipificadores do Ordenamento Positivado;

2) em segundo lugar, lhe dar os "parabéns" por considerar a Antropologia, a Sociologia e a Psicanálise como mera "Perfumaria", uma vez que isso só pode significar que estes verdadeiros campos do saber acerca do ser humano e da sociedade em que vivemos CHEIRAM BEM, diferentemente de "certas disciplinas" jurídicas - como é o caso do Direito Tributário, por exemplo, que CHEIRA MUITO MAL por possuir duas finalidades (uma latente e outra declarada), quais sejam a de tentar justificar o ESPOLIAMENTO do patrimônio particular por parte do Estado, ou então, a de legitimar o CALOTE por parte do particular em cima da Receita Pública.

Não é de surpreender que uma de suas frases favoritas em sala-de-aula seja: "Vocês não estão em época de 'selecionar' conhecimento, mas sim de absorver!".
Bem, Professor: não sei dizer se a burguesia para a qual o senhor está habituado a lecionar, realmente se encontra "despreparada" para "selecionar" conhecimentos (e por isso engole de bom grado toda a sorte de excrementos que lhes são enfiados goela abaixo!); mas esse com certeza não é um critério que se aplica a todos que estão em busca de algum conhecimento na área jurídica, principalmente porque, como todos sabemos, NÃO EXISTEM verdades absolutas no campo das infinitas possibilidades do "Universo das Relações Humanas".
Eu sempre estive APTO SIM, a "selecionar" o tipo e a qualidade das informações que pretendo absorver - desde pequeno me recusando a aceitar qualquer forma de censura referente ao material literário com o qual pretendo me relacionar, até mesmo da parte de meu Pai e minha Mãe - de maneira que me considero "um pouco velho demais" para permitir que agora, aos 31 anos de idade, venha uma instituição para a qual eu não pago pouco ($$$), me dizer o que eu DEVO ou NÃO DEVO levar em consideração...
Mas talvez essas críticas sejam oblíquas e ineficazes, uma vez que o senhor é fruto e produto desse mesmo desqualificado Ensino de Massas, portanto, logo INCAPAZ de compreender as minhas críticas sem se colocar DE FORA desse mesmo Sistema de Ensino, ao qual hoje o senhor perpetua e faz parte.
Talvez um dia, tomando um chopp gelado numa mesa de bar - num momento distante da ótica "verticalizante" que te coloca como professor ACIMA DE MIM, insignificante aluno - possa lhe fazer compreender ao menos UM POUCO do conteúdo da crítica que lhe faço através destas mal-digitadas linhas...
Um grande abraço e até segunda-feira, durante a avaliação punitiva, covarde e mesquinha, chamada Exame Final!

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Saudade da época da "Histeria Nuclear"...

A maioria dos meus colegas de faculdade não se lembra, pois eram muito pequenos ou sequer nascidos naquele tempo: o maior barato dos anos 80 não foi a New Wave nem o primeiro Rock in Rio; não foi a incrível seleção de 1982 - que com Telê Santana à frente, conseguiu a inigualável façanha de se tornar o único time de futebol da história, a ser recepcionado como campeão, mesmo voltando para casa derrotado - e nem mesmo a volta do regime democrático às Terras Brasilis.
O maior barato dos anos 80 foi o medo constante e a histeria coletiva que imperava (principalmente na mídia, claro!) acerca de um quase certo e extremamente próximo Holocausto Nuclear. A dolorosíssima "morte pelas chamas" nos aguardava logo ali, na próxima esquina. Impossível saber se veríamos o sol nascer na manhã subseqüente. Sobreviver - caso você possuisse um abrigo anti-nuclear ou um guarda-chuva de chumbo para se proteger da chuva de partículas radiativas -, era pior ainda, pois os sintomas de uma infecção nuclear (que você iria contrair inevitavelmente, após poucos dias respirando a poeira atômica que a bomba espalharia na atmosfera) fa-lo-ia desejar ter sido imediatamente varrido das dores da existência... Sem falar nas terríveis alterações genéticas que poderiam ser transmitidas cromossômicamente, condenando de antemão às gerações futuras! Sobreviver ao tal Holocausto Nuclear, significava na melhor das hipóteses, morrer lenta e dolorosamente de câncer; e na pior, gerar bebês que brilhavam no escuro. O que poderia ser "mais divertido" do que isso?
Penso que o auge da "Histeria Nuclear" ocorreu em 1986, por ocasião do vazamento na Usina Nuclear de Chernobyl, na Ucrânia (na época, pertencente à URSS). O governo soviético tentara esconder da comunidade internacional o ocorrido, até que os índices de radiação se tornaram tão altos, que foram detectados em outros países. O acidente foi responsável pela evacuação de mais de duzentas mil pessoas e pelo isolamento de uma área de 18km ao redor da Usina - área esta, interditada para o plantio e habitação pelo menos pelos próximos cinqüenta anos.
O acontecimento despertou um verdadeiro pânico aqui no Brasil, por causa da Usina de Angra. Comentavam na época, que bastaria um vazamento de proporções muito inferiores ao ocorrido em Chernobyl, para causar uma tragédia de dimensões infinitamente MAIORES. Os argumentos utilizados por esses "profetas do apocalipse", defensores desta tese, eram a proximidade com a cidade do Rio de Janeiro e o fato da Usina ser localizada à beira-mar (o que inevitavelmente condenaria toda a população e a fauna marinha das regiões Sudeste e Sul, por conta das correntes-marítimas que convergiam justamente naquele ponto geográfico). Havia ainda a questão da carne, leite e ovos – contaminados pela radiação, por causa do vazamento na Europa – que muitos juravam, viriam parar na mesa de nós, brasileiros ("ou vocês acham que aqueles comunistas irão arcar sozinhos com todo aquele prejuízo?", proclamavam os mais exaltados). Então, durante mêses, evitou-se a carne e os ovos, que chegaram a desaparecer das prateleiras dos mercados - provavelmente por culpa do Plano Cruzado, mas muitos atribuíram ao acidente de Chernobyl. Essa foi a tal da "Histeria Nuclear"...
Hoje, não temos NADA que se iguale a ela. A tal "Ameaça Terrorista" - significante de pânico da vez, tão minuciosamente trabalhado pelos deformadores da realidade - não chega sequer na unha do dedinho do pé da "Histeria Nuclear". Quem não a viveu, perdeu tempos muito interessantes!
Oh, que saudade dos anos 80...