segunda-feira, 22 de junho de 2009

Sobre baleias e grãos de areia

No primeiro final de semana após as aulas começarem ― já repararam nesse hábito irritante que a FDC tem de começar as aulas numa quinta-feira, sob o pretexto de evitar as temidas “aulas de reposição”? ―, eu estava em Santa Catarina por conta de uma reunião com um grupo de estudos do qual eu participo lá em Joinville, quando no sábado ao entardecer, após o encerramento das atividades do Campo Lacaniano, me ocorreu um sentimento profundo de que talvez fosse a minha última oportunidade para ver o mar antes de retomar de vez a velha e enfadonha rotina de casa-estágio-faculdade-casa.
A princípio, imaginei exercitar um pouco as minhas vaidades burguesas em Balneário Camboriú, onde poderia aproveitar os preços reduzidos da baixa-temporada e me hospedar em algum hotel muito confortável à beira-mar, para tentar escrever mais algum capítulo da minha atravancada Dança dos Ventos ― novela enrolada na qual venho trabalhando desde 2002, aproximadamente ― quando me ocorreu estarmos em pleno inverno, época na qual verifica-se a aproximação de um visitante muito interessante em algumas praias ao sul do estado e na região de Florianópolis: cardumes de Baleias Francas, que migram durante o inverno para o hemisfério norte a procura de águas mais quentes para o acasalamento.
Resolvi então prolongar um pouco mais a minha solidão na estrada e dirigir algumas horas para ver se teria sorte em desfrutar, ao menos por alguns momentos, da companhia desses últimos seres titânicos, capazes de cruzar o planeta a nado-livre através de toda a imensidão azul de seus infinitos oceanos desde muito antes dos animaizinhos “pensantes” aqui da superfície sequer imaginarem algum dia virem a andar sobre duas pernas.
Pergunto-me que tipo de abençoada coincidência, levou “O Cara” lá de cima a colocar na rota desses seres magníficos ― sem dúvida alguma, uma das obras-primas de Sua Criação! ―, praias tão próximas de nós? Vivemos tão perdidos em meio ao nosso louco e incessante movimento pela sobrevivência aqui no alto da superfície, que sequer reparamos quão próximas de nós estão as coisas mais grandiosas do Universo.
A experiência de dirigir na BR-101 a noite pode ser muito assustadora. Principalmente no trecho entre Florianópolis e Porto Alegre (o chamado “Corredor da Morte”), onde a pista não é duplicada e o tráfego de caminhões é intenso, por conta do porto de Itajaí. Principalmente quando se está dirigindo um Celta 1.0, que é um carro leve e de baixíssima estabilidade: o acostamento é estreito e os caminhões te ultrapassam tão de perto, mas tão de perto ― tirando fina mesmo! ―, que você chega a sentir as quatro rodas se erguerem do asfalto e o volante ficar completamente solto nas suas mãos quando se entra no vácuo de um desses monstros vomitadores de diesel (o que é completamente inevitável quando se está no “Corredor da Morte”). Sem falar nos faróis ofuscantes que vêm em sentindo contrário e que acabam te cegando mesmo, devido ao mau-estado de conservação das guias e faixas-sinalizadoras da rodovia.
Bem, foi após enfrentar algumas horas estressantes atrás do volante ― salvas apenas pelo blues de Willie Dixon e pelo rock’n’roll de Led Zeppelin ― que eu cheguei na casa de um velho conhecido, na localidade chamada Areias do Macacú : uma praia completamente deserta, separada de um pequeno vilarejo pelas dunas, composto de uma escola e uma capelinha, próximo ao município de Garopaba. Os moradores vivem da pesca e da pecuária, e a gadaria (muito boi zebu e vacas nelori) corre solta pelos vastos pastos da região, que conta ainda com uma magnífica lagoa de água-doce e a presença de duas cachoeiras liberadas para banho durante o Verão. Toda essa magnífica beleza natural ― já demonstrando avançados sinais de infecção pelos sintomas da vida moderna ― conta ainda com o acréscimo, durante três meses ao ano, da presença de uma visitante milenar em sua existência e misteriosa em seus desígnios: a Baleia Franca.
João Pirata é um gaúcho de Porto Alegre que, cansado da rotina da vida urbana, refugiou-se em Areias do Macacú no final da década de sessenta e há quase quarenta anos vive por lá, numa pequena propriedade, composta de um casarão e duas meias-águas ao pé de uma grande duna de areia. Durante a alta-temporada, transforma a casa da frente numa pizzaria (conhecida como “A Toca do Pirata”) para atender aos turistas e fora da temporada sobrevive fazendo trabalhos de ourives e bijuterias para boutiques e joalheiras de Florianópolis que revendem seu trabalho pelo triplo do preço que lhe pagam. Conheci-o em meados da década de 90, quando eu ainda era músico e rodava as praias do litoral sul durante o verão, em busca de trabalho e estadia barata para curtir as férias. Naquela ocasião (acho que foi no Verão de 1995), o Pirata me deu trabalho e me acolheu em sua residência, originando dali uma amizade que dura até os dias de hoje.
― Tocaio! ― recebeu-me gritando em carregado sotaque gaudério, o termo que no dialeto do sul significa “xará”. Tamanho entusiasmo, revelava realmente o peso que a solidão dos meses de inverno deviam exercer sobre a mente daquele homem, longos dias e longas noites debruçado sobre seus trabalhos artesanais, desfrutando de conversa e companhia humana apenas em momentos raríssimos.
Após fazer-me entrar e me arranjar um confortável quarto de frente no segundo andar da casa, jantamos um delicioso caldo de peixe e fomos nos sentar nas redes da varanda para fumar cigarros de palha e conversar sobre a vida ― campeonato paranaense, campeonato gaúcho, o aumento da criminalidade na região, a aproximação das areias da duna que começavam a ameaçar sua propriedade, o aparecimento cada vez mais escasso das baleias por aqueles lados devido ao aumento absurdo da poluição nas águas durante os últimos cinco anos, etc. Foi quando eu sugeri uma caminhada noturna pela praia deserta, para exercitar as pernas cansadas de horas de direção e espairecer ainda mais as idéias, inundando os pulmões com a brisa-marinha e colocando as solas dos pés em contato com a areia gelada da madrugada.
Pirata ― como não poderia deixar de ser ― levou uma garrafa da melhor “amarelinha” da região para esquentar nossa caminhada e, enquanto nos afastávamos da estradinha de terra rumo à direção do caminho de pedras que conduzia à praia, ele me contava a intrigante história do casal de velhinhos que eram os donos do melhor alambique das redondezas e há mais de cinqüenta anos dedicavam-se à arte de destilar cachaça para a localidade. Falava-me sobre como o velho havia ficado meio destrambelhado depois que a velhinha morrera de cirrose hepática no ano anterior, deixando-o sozinho no mundo. Desde então, ele (que também sofria de cirrose!), passara a vagar pela praia de madrugada, em estado delirante, declamando passagens do Evangelho e proferindo sentenças em dialeto carijó, idioma dos antigos índios que habitavam a região. Achando muita graça naquilo, comentei:
― Os fabricantes de cachaça doentes de cirrose? Será que foi o tédio da vida interiorana ou foi mesmo o “amor pela profissão” que os levaram a abusar do próprio veneno que produziam?
― Eles não bebiam! ― respondeu-me o Pirata, para minha total surpresa e consternação. ― Eram religiosos convictos e tinham na fabricação da aguardente, um modo de subsistência que lhes foi transmitido de pai para filho desde os tempos dos primeiros colonos açorianos.
Esclareceu-me então, que o fato que os levou a desenvolver a doença, foi a exposição diária prolongada por horas a fio aos vapores etílicos exalados pelo velho destilador de cobre. O álcool inalado pode fazer tantos estragos ao sangue quanto aquele ingerido deliberadamente pela via oral, nos balcões de bares e outros estabelecimentos congêneres, onde homens e mulheres de bem vão para esquecer os últimos resquícios de pudor e sobriedade após mais uma extenuante jornada de trabalho.
― Ossos-do-ofício... ― concluiu de maneira sarcástica.
Enquanto caminhávamos, eu me deparei com um estranho brilho no meio da trilha de areia, contorcendo-se em meio a marcas de pneus: uma pequena cobra-coral, provavelmente atropelada por algum jipe que fazia trilha naquela região. As escamas vermelho-e-pretas, esfoladas em diversas partes do pequeno corpo cilíndrico; a boca abrindo-se e fechando-se num esgar de agonia, revelava as presas pontiagudas, carregadas de veneno gotejante. Eu estava destampando a garrafa de água-mineral para jogar em cima do réptil quando o Pirata interveio:
― Não vá ajudar um bicho desses não! Coral é a mais traiçoeira de todas as serpentes: ela não arma bote, ela pica no calcanhar. A gente ajuda ela agora, damos dois passos e ela nos ataca pelas costas...
Continuamos caminhando, enquanto eu reparava o quanto a paisagem estava escura devido ao céu intensamente nublado, apesar de um tímido conjunto de constelações esforçar-se ao máximo para aparecer por entre uma pequena rachadura no pesado reboco de nuvens cinzentas. Numa certa altura da caminhada, uma simpática gaivota ― provavelmente sofrendo de insônia ou de algum inesperado ataque de gulodice noturna ― resolveu nos fazer companhia e passou a nos acompanhar pela praia, caminhando ao nosso lado como se fosse o mais fiel dos cachorrinhos adestrados. Ou talvez quisesse simplesmente se certificar que aqueles incômodos intrusos fora de hora não fossem pisar distraidamente no ninho que ela com tanta dificuldade vinha tentando aquecer, em meio àquelas geladas areias de inverno.
O fato é que esta gaivota nos acompanhou aproximadamente durante uns dois quilômetros de caminhada. Parando quando parávamos. Apressando os desajeitados passos ― passos de criatura que não decidiu muito bem se pertence à terra, à água ou ao ar ― quando apressávamos os nossos. Alçando pequenos e rasteiros vôos para nos acompanhar quando empreendíamos pequenas corridas com a intenção de nos certificar realmente se o bicho estava mesmo a nos seguir. E assim aconteceu até não nos restar mais dúvidas.
Eu não me agüentava de tanto rir! Imagine só: uma gaivota que nos seguia, parava quando a gente parava e ainda por cima olhava para a gente com um tamanho olhar de compreensão quando falávamos com ela, que até dava vontade de jogar um pauzinho longe, na areia, só para ver se ela ia trazer de volta na boca, abanando o rabo e exigindo uma nova bateria de elogios entusiasmados e talvez ― ela não poderia saber! ― um delicioso e prateado peixe fresco tirado do bolso do casaco, como recompensa pela façanha. Este teria sido sem dúvida o fato mais impressionante da viagem, se não fosse o que aconteceu logo em seguida...
Após mais uns quinze minutos de caminhada, avistamos na areia, cerca de uns trezentos metros de distância, uma figura cambaleante que mais lembrava um dos gaúchos maltrapilhos e miserabilizados pela Guerra Farroupilha, saído de algum seriado de época da Rede Globo. Gesticulava demais, discursando para o mar um entusiasmado sermão, do qual o vento trazia até nossos ouvidos fragmentos de uma palavra ou outra, a maioria incompreensível. Pirata virou-se para mim e disse:
― Esse aí não morre tão cedo. É só falar nele que ele aparece... Mesmo na praia deserta e a uma hora dessas da noite!
Quando estávamos a mais ou menos uns cento e cinqüenta metros da estranha e ensandecida figura, o vulto simplesmente parou de esbravejar e de movimentar os braços que agitava alucinadamente, como que percebendo a nossa presença. Senti um frio na barriga. Mas, quando nos aproximamos mais uns cinqüenta metros, o estranho e magérrimo “gaúcho” parou de olhar o mar e virou a cabeça para nos encarar fixamente. Neste momento, tive vontade de me virar, largar o João Pirata ali mesmo e correr com todas as forças que ainda restavam às minhas pernas. Difícil descrever o medo que senti ao perceber, à medida que nos aproximávamos mais daquela sombria e deslocada figura, que seu semblante exibia-nos duas brilhantes e bem cuidadas fileiras de dentes. Sim: o inacreditável e completamente louco “gaúcho açoriano” das dunas catarinenses, sorria-nos com uma expressão no olhar, que faria qualquer Charles Mason da vida parecer o mais inofensivo dos Teletubbies.
― Puxa, Pirata... Você tem certeza que é uma boa idéia chegar nessa figura para trocarmos uma idéia?
― Fica na boa, meu tocaio! ― respondeu-me com olhar de soslaio e uma imensa gargalhada enrustida no fundo da garganta que ameaçava vir à tona a qualquer momento. ― Você irá conhecer o maior mestre de alambique da região. Figura de extrema gentileza e simpatia para com todos. É só você não se assustar com esse lado... hmmmm... meio “profético” do nosso amigo. Principalmente porque as suas “profecias”, na imensa maioria das vezes (e isso só começou após a morte da velha) têm se mostrado de uma precisão impressionante. Até agora ele não errou nenhuma...
Bem, fiquei quieto e decidi que ia deixar o Pirata conduzir aquela situação da maneira que já devia estar acostumado a fazer. Não só porque eu não estava me sentindo nem um pouco à vontade para ficar “trocando idéias” de madrugada com um psicótico em estado de delírio, no meio de uma praia deserta; como também não havia entendido coisa alguma daquele papo de “profecias de precisão impressionante” ― e um lado meu tinha medo de ficar curioso e acabar descobrindo.
― Boa noite, Sr. Engarrafador de Sonhos Perdidos e Ilusões Despedaçadas, Henrique Miguel dos Anjos de São Gabriel! ― gritou-lhe o Pirata enquanto lhe estendia os dedos entreabertos para um amistoso aperto de mãos.
― Que o Arcanjo São Gabriel esteja com aqueles que vagam pelas areias da praia durante a noite! ― retrucou-nos em voz gutural a estranha figura parada na parte mais rasa da arrebentação, com a espuma das ondas a cobrir-lhe as botas enterradas na areia até a altura dos tornozelos e as abas do chapéu de feltro, estilo Bento Gonçalves, carcomidas pelo tempo a esconder-lhe os olhos que através das sombras nos encaravam.
― Quero apresentar-lhe o João Rosa, meu amigo lá de Curitiba, capital do Paraná. ― apresentou-me ao estranho o Pirata; apresentação à qual eu imediatamente estendi a mão.
― Muito prazer, Seu Henrique... Eu sou o João, lá de Curitiba.
― Sabe, “Seu Doutô”... Faz muito tempo que elas não se aproximam aqui da praia como antigamente. Antigamente, elas se ‘aproximava’ muito mais! Antigamente dava p’ra vê elas fazênu amor ali na espuma, bem onde as ondas quebram. A poucos metros de onde nós tá conversanu agora!
Aquilo me impressionou demais, de uma maneira surpreendente. Como poderia aquele andarilho saber acerca das minhas qualificações acadêmicas? Como ele poderia saber que eu era um universitário? E acima de tudo: como poderia saber acerca das baleias? Como ele adivinhara o verdadeiro motivo de eu estar caminhando pela praia naquela noite fria e me fornecera uma resposta, muito antes de eu sequer ter formulado a pergunta em pensamento?
― O senhor está falando sobre as baleias, Seu Henrique? ― retruquei, tremendo nas bases sem ter nada melhor para falar.
― Bem... ― pigarreou o João Pirata, salvando-me da situação embaraçosa na qual me encontrava. ― O que o senhor acha, seu Henrique, de sentarmo-nos na praia, fazermos uma bela fogueirinha e um chimarrão, para conversarmos enquanto eu e meu amigo paranaense terminamos de degustar essa garrafa de “amarelinha”, produzida e engarrafada com tanto carinho por suas próprias mãos de “artista-artesão”, detentor da arte milenar de transformar a garapa da cana no licor que seduz, embriaga, e traz lá dos céus a inspiração para tantos violeiros e poetas que durante a noite, andam cambaleantes pelas areias da praia, declamando versos à luz do luar...?
O velho e viúvo andarilho, dono da destilaria local e “mensageiro do Arcanjo São Gabriel”, deu-nos um sorriso e, por alguns instantes, tive a impressão de que, por debaixo das carcomidas abas do chapéu que ele usava, ele nos piscou um olho amarelado pelos vapores etílicos da cirrose. Como que nos agradecendo pelo gentil convite de partilhar o chá, a conversa e o fogo.
Enquanto o Pirata tirava jornal e uma garrafa térmica de dentro da sua carcomida mochila verde-oliva, de hippie velho de guerra, eu me afastava em direção às árvores aos pés das dunas na intenção de recolher alguns gravetos para ajudar na fogueira. Enquanto caminhava em meio aos esquálidos arbustos, ponderava ainda sobre o episódio da cobra ― tão frágil e necessitada em meio à sua dor, mas ainda assim com as presas gotejantes de veneno.
Aproximei-me alguns minutos depois, trazendo uma braçada de pequenos galhos secos de arbustos e o Pirata e o Velho Henrique já haviam feito um pequeno buraco na areia da praia, com a intenção de proteger as chamas do vento gelado que soprava. Eu havia acabado de me sentar, quando o Velho começou a falar, de uma maneira que parecia captar meus pensamentos diretamente de dentro da minha cabeça:
― Ela tinha veneno mas também faz parte da Criação de Nosso Senhor...
― O quê? O senhor está falando da coral que encontramos no meio da est... ― fui silenciado pelo Pirata, que pousou um pulso firme sobre o meu ante-braço ao mesmo tempo em que me piscava o único olho que lhe restava, como que querendo me dizer “não interrompa as divagações do velho”.
― “Sim... ― continuou o velho como se não tivesse prestado a mínima atenção à minha interrupção ― Ela podia ser uma criatura venenosa, mas não tinha culpa de sua condição. Um pouco da sua água a teria ajudado a sobreviver. E você provavelmente estaria ajudando a serpente que iria lhe tirar a vida, mas nem você nem ela teriam culpa, pois não há um único grão de areia no universo que ao ser levado pelo vento, não o seja por vontade do Senhor!
Eu estava estarrecido. O Pirata olhava maravilhado para o Velho Henrique, que falava pausadamente, o reflexo das chamas a trepidar-lhe sombras fantásticas no rosto. O olhar amarelado sem desviar-se um único segundo da espuma branca que marcava o seu limite a poucos metros de onde estávamos sentados:
― “Antigamente, as náiades vinham aos milhares. Não tinham medo. A água era limpa.
― O senhor está falando das baleias? ― interrompi novamente, esquecendo-me completamente da advertência do Pirata. Naquele momento eu já estava tão fascinado pelas sentenças “absurdas” do Velho, que me sentia como um netinho ouvindo histórias aos pés do avô, querendo mais é dar bastante “corda” para ele falar bastante.
― “Você me entendeu... ― concluiu o velho. E fazendo-me lembrar de um cd-player com defeito, que ficasse pulando as faixas de um disco desordenadamente, ele emendou uma narrativa que, aparentemente, nada tinha a ver com tudo o que ele havia falado até então. Somente algum tempo depois ― principalmente agora, que escrevo estas mal-datilografadas linhas ― vim a perceber o grande senso de Unidade, de Equilíbrio e a grande sabedoria das palavras daquele velho e louco mensageiro do cosmos, leitor da Bíblia e destilador de aguardente. Ele começou mais ou menos assim:
― “Vou te contar uma história que aconteceu há muitos e muitos anos, aqui mesmo, nas areias desta praia. Muito antes do Grande Tupã colocar o primeiro de seus filhos carijós para cultivar e prosperar onde a grande Me-Boi deixou seu rastro pelas bordas das águas de Iara, havia um grão-de-areia que era apenas mais um entre milhões de milhares de infinitos outros grãos-de-areia exatamente iguais à ele ...
“Era exatamente esse o seu grande obstáculo, sua grande tristeza, a imensa cortina de escuridão que fazia com que ele estivesse mal com a sua própria existência: ele não queria ser como os outros. Não queria ser apenas mais um no meio de milhares.
“Todas as noites, ele ficava largado no meio da praia ― apenas mais um entre milhares ― e com muita inveja, contemplava o firmamento, maravilhado com o brilho das estrelas e com as características muito próprias, muito individuais de cada uma: cada qual com seu nome próprio e seu lugar inconfundível no firmamento. Como gostaria de vagar e ser conhecido entre elas! Como gostaria de ter também sua luz-própria e seu próprio calor, em vez de ser apenas mais um frio, opaco e desconhecido grão de areia. Apenas mais um entre milhares...
“Começou então a sonhar em ser um Cometa. Um belo cometa que atrairia a atenção de todos na Terra e que correria livremente pelo espaço deixando um rastro de luz por entre suas irmãs estrelas e encantando para todo sempre seus irmãos grãos-de-areia com a beleza de suas cinco pontas.
“Mas eis que um dia, um vento muito forte começou a soprar e o pequeno Grão-de-Areia sem lugar para se agarrar, sentiu-se ser separado dos outros milhares de milhões de grãos-de-areia iguais a ele e, sem a menor possibilidade de escolha, viu se levado embora pelos ares, arrastado à deriva pelos braços da impiedosa ventania, que sem a menor cerimônia, rodopiou-o rumo às alturas e depois afastou-o da terra para muito longe, muito distante em direção ao mar, para além da linha do horizonte...
“E quando a ventania finalmente largou o nosso amigo Grão-de-Areia, ele foi precipitado nas águas do mar e desapareceu, engolido pelas profundezas das fossas abissais. Apenas um grão-de-areia, sozinho no meio do frio, da escuridão e da imensidão das águas sombrias do Oceano. Até mesmo o firmamento e o brilho das estrelas foram-lhe arrematados pela impiedosa ventania que arremessou-o ao fundo das águas.
“E assim, passaram-se décadas, séculos e milênios. Longas Eras em que o pobre Grão-de-Areia viveu nas profundezas dos mares sendo jogado de lá para cá pelas marés; sendo revolvido pelas ondas que o arrebentavam de encontro ao solo e o traziam quase à tona, apenas para arrastá-lo rumo às profundezas novamente para então começar tudo de novo...
“Sentia saudades dos seus irmãos ― os mesmos que outrora considerava tão insignificantes! ― mas de quem, em companhia, usufruía ao menos do brilho das estrelas para admirar. Lembrou-se do seu Grande Sonho, de um dia vir a tornar-se um Cometa, e pensou: ‘Oh, Grande Tupã! Como fui tolo e arrogante um dia!’.
“E foi justamente nesse dia, em que o Grão-de-Areia percebeu o tamanho de sua tolice e de sua pretensão; o tamanho de sua arrogância em relação aos Grandes Desígnios da Existência, que uma onda veio sem o menor aviso e devolveu-lhe à superfície da terra, jogando-o novamente na areia da praia em meio aos seus outrora ‘irmãos’, grãos-de-areia.
“Ele olhou com admiração o céu, após todos aqueles anos passados nas profundezas e logo em seguida, percebeu que não era mais IGUAL aos outros grãos-de-areia da praia: algo nele havia mudado radicalmente e ele percebeu que de uma maneira que jamais imaginara, havia realizado o seu grande sonho...
“Não havia se tornado um cometa, mas havia se tornado uma Estrela-do-Mar”.

Ficamos alguns minutos em silêncio após a narrativa do Velho e, na hora em que a fogueira estava quase se apagando ― indicando que se aproximava o momento de voltar para casa ―, reparei que o céu estava inteiramente estrelado: as nuvens haviam se dissipado, revelando inclusive uma bela lua quarto-crescente, que deixava uma trilha dourada magnífica sobre as águas completamente escuras. Guardamos as coisas de volta na mochila do Pirata e nos despedimos do Velho, que se afastou na direção oposta, provavelmente para continuar sua caminhada até a chegada dos primeiros raios-de-sol.
Num determinado momento, durante a caminhada de volta, Pirata chamou-me a atenção ― “olha só quem está de volta!” ― para uma inusitada companhia: a gaivota que havia nos acompanhado no começo do trajeto (e que provavelmente permanecera por perto durante aquelas horas de prosa), voltara a nos fazer companhia durante o percurso. Quando estávamos nos aproximando das pedras, para deixar a praia e retomar a estrada de terra que levava de volta à residência do Pirata, ela se adiantou aos nossos passos, empertigou-se na ponta de uma pedra baixa e, como que nos dando adeus, bateu as asas e mergulhou decidida no oceano. Esperei ainda alguns poucos minutos para ver se a via submergir com algum peixe na boca, mas ela não retornou à superfície.
No dia seguinte, dirigindo de volta para Curitiba, já me preparando espiritualmente para retomar a rotina do “casa-estágio-faculdade-casa”, eu pensava no imenso significado daquela história toda que acabava de acontecer comigo e no “porquê” daquela viagem, que no final de tudo, dava a impressão de ter me conduzido até lá apenas para ouvir uma louca história, contada por um velho louco no meio de uma praia fria. Não ganhei a bela visão das baleias, mas ganhei alguma coisa bem maior...
E essa coisa bem maior é a certeza de que um dia eu escreveria esta história. E esta história seria escrita e dedicada para uma pessoa muito especial, que irá lê-la e dela irá retirar também algo que é bem maior que estas linhas e estas folhas em que ela está contida agora.
Mas esse algo “maior” eu não saberia dizer o que é (será que alguém sabe?), afinal de contas, jamais saberemos para onde o Vento levará os Grãos-de Areia...


João Rosa - Curitiba, 22 de junho de 2009.

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